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O Brasil já vive sob a lógica de um narcoestado?

Por Ana Lucia
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A madrugada de 28 de outubro marcou uma das cenas mais brutais da história recente do país. Mais de 2,5 mil policiais civis e militares invadiram os complexos do Alemão e da Penha, no Rio de Janeiro, em uma operação que terminou com mais de 120 mortos, entre eles quatro agentes de segurança. A ação escancarou o que o Brasil tenta negar há anos: o avanço de um crime organizado que deixou de estar apenas nos presídios e passou a disputar território, economia e poder político.
Hoje, facções criminosas têm presença em todos os estados brasileiros. Duas se destacam no comando nacional: o Primeiro Comando da Capital (PCC), com base em São Paulo, e o Comando Vermelho (CV), que domina o Rio de Janeiro. O poder dessas organizações ultrapassa o tráfico de drogas: movimentam milhões de reais em lavagem de dinheiro, contrabando, fraudes em combustíveis, golpes digitais e fintechs de fachada.
O Comando Vermelho nasceu no final dos anos 1970, na prisão de Ilha Grande, quando presos comuns e políticos criaram um código interno de convivência que evoluiu para uma estrutura de poder. A ausência do Estado e o domínio territorial nas favelas transformaram o CV em um governo paralelo. Hoje, o grupo controla mais de 800 das 1.724 comunidades do Rio, cada uma com lideranças e regras próprias.
O PCC, fundado em 1993 após o massacre do Carandiru, cresceu sob um modelo de “empresa criminal”. Com caixa comum, estatuto e disciplina interna, o grupo expandiu-se pelo país e pelo exterior. Hoje, tem presença em mais de 20 países e conta com cerca de 40 mil membros, tornando-se a maior facção da América do Sul. O crime se profissionalizou: o PCC opera no sistema financeiro, usa empresas de fachada e atua com lavagem de dinheiro em escala global.
O poder dessas redes se sustenta em uma economia paralela complexa. Menos de 5% da receita vem atualmente da cocaína. O grosso vem de extorsão, golpes virtuais, comércio ilegal e controle de territórios. Em muitas comunidades, o Estado é apenas uma presença simbólica. O tráfico assumiu funções que o poder público abandonou: garantir renda, impor regras e resolver conflitos. Assim, o crime deixa de ser apenas ilegal e passa a ser funcional.
Para o morador de uma comunidade, pouco importa se a autoridade vem de um governo eleito ou de um chefe de facção: o que vale é saber quem realmente manda. O PCC e o CV entenderam que o poder não se mantém apenas pela força, mas pela previsibilidade. Enquanto um oferece “proteção” e crédito, o outro administra fluxos financeiros e impõe disciplina dentro e fora dos presídios.
O Estado brasileiro, fragmentado e burocrático, enfrenta uma estrutura que atua com lógica empresarial e coordenação territorial. O resultado é um país com dois sistemas de poder: o formal, sustentado por leis e instituições; e o informal, comandado pelo crime, pelo dinheiro e pela coerção.
A pergunta, portanto, já não é se o Brasil caminha para se tornar um narcoestado — mas o quanto dessa lógica já está instalada. Em várias regiões, as facções coletam, administram e investem recursos com mais eficiência que o próprio Estado. Onde o governo se ausenta, o crime assume o controle, preenche o vazio e redefine as regras.

GED

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